- Felipe Souza – @felipe_dess
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Comprar online é confortável, prático, ágil e se tornou uma febre mundial após a pandemia da Covid-19, quando as lojas físicas fecharam para seguir as normas de distanciamento social. Mas, em São Paulo, os mais pobres não têm essa chance.
Na maior e mais rica cidade da América Latina, as encomendas não sobem os morros das favelas nem entram em áreas consideradas de risco, como ruas dos bairros da Brasilândia, Itaim Paulista e Parelheiros. Pessoas ouvidas pela BBC News Brasil, que moram nessas regiões, disseram que precisam pedir para que as encomendas delas sejam entregues em bairros vizinhos, considerados “seguros” pelos serviços de entrega – como os Correios.
Incomodado com essa situação, o morador de Paraisópolis Giva Pereira, de 21 anos, fundou o Favela Brasil Xpress. Trata-se de uma rede de entregadores que moram na própria favela e entregam as mercadorias onde os Correios e as transportadoras contratadas pelas empresas de e-commerce não entram.
A empresa surgiu em setembro de 2020, em meio à necessidade de possibilitar que as doações feitas durante a pandemia chegassem às casas dos moradores da segunda maior favela de São Paulo.
“Definimos que a cada 50 casas da favela haveria um morador voluntário, que chamamos de presidente, para monitorar as necessidades de cada família. Eles analisavam quem mais precisava de cesta básica, marmita e doações. Mas, por medo de serem assaltados, por conta do preconceito com a favela e pelo receio de se contaminar com o coronavírus, muitos doadores não subiam o morro e nós mesmos montávamos as cestas básicas e entregávamos”, contou el
Giva afirmou que essa coordenação criou naturalmente uma rede de logística na favela. Funcionava da seguinte forma: os voluntários buscavam os itens nas casas ou empresas doadoras para levar até Paraisópolis, onde eram distribuídos de porta em porta para as famílias mais necessitadas, identificadas pelos presidentes de rua.
“A comunidade de Paraisópolis teve um crescimento desordenado muito grande desde o seu surgimento e isso causou uma desorganização dos números das casas. O entregador coloca o endereço no GPS, mas não encontra. Já os moradores conhecem tudo e entregam sem problemas.”, afirmou o jovem empreendedor.
Com o crescimento do e-commerce, a ideia de Giva Pereira foi então sugerir parcerias com as empresas para que os próprios moradores fizessem as entregas.
Procurados pela reportagem, os Correios dizem que “estudam a formalização de parceria para realização de entregas nos citados endereços” com a Favela Brasil Xpress.
Como funciona
O Favela Brasil Xpress implanta um centro de distribuição na entrada da região onde os serviços de entrega não têm restrições. No local, que pode ser um contêiner ou uma sala, são armazenadas as mercadorias.
No momento da compra, o cliente apenas precisa colocar o endereço da casa dele. A passagem pelo centro de distribuição é feita de maneira automática e não tem custo extra para o consumidor.
Atualmente, o Favela Brasil Xpress tem parceria com Americanas, Dafiti, Total Xpress e Via Varejo. A iniciativa ganhou o Prêmio BBM de Logística, tido como o Oscar do setor, na categoria startup.
De acordo com uma pesquisa feita pela consultoria Outdoor Social Inteligência, nas 15 maiores favelas do país, 38% dos entrevistados disseram que fazem compras online, principalmente no setor de vestuário. Isso representa que 62% deste público ainda não compra e não é assistido pelo comércio digital.
A Outdoor Social Inteligência apontou ainda ter identificado uma tendência de alta nas compras online e que “ainda há muito o que ser feito e investido”.
Investimento e expansão nacional
Em nove meses de funcionamento, o Favela Brasil Xpress já tem 90 pessoas contratadas apenas em Paraisópolis. Sendo 41 funcionários com carteira assinada, entre operadores e entregadores. Todos os trabalhadores moram na própria favela.
O projeto já foi implantado em Heliópolis, a maior favela de São Paulo, na Cidade Julia (Diadema, na Grande SP), no Capão Redondo (zona sul da capital), além das favelas da Rocinha e Vila Cruzeiro, ambas no Rio de Janeiro.
O idealizador do projeto, Giva Pereira, conta que o sucesso do projeto atraiu a atenção de diversas empresas e investidores. Segundo ele, há negociações em andamento para levar o Favela Brasil Xpress para outras regiões do país.
O atual plano de expansão prevê 50 novas bases em 50 favelas do Brasil até o fim de 2022, além da modernização do sistema atual para melhorar a velocidade das entregas. Hoje, o Favela Brasil Xpress entrega aproximadamente 800 encomendas por dia, apenas em Paraisópolis, avaliadas em cerca de R$ 500 mil.
“Isso é uma prova de que a favela consome no mercado online. Antes, o morador fazia a compra e colocava o endereço do trabalho ou de alguém que morasse fora da comunidade. Hoje, ele vai colocar o CEP dele, pagar o preço normal e receber na porta de casa”, conta Giva Pereira com orgulho.
Essa ainda é a realidade da universitária Elisangela da Silva Cardoso, de 26 anos. Ela mora no Itaim Paulista, no extremo leste de São Paulo, e sempre pede para entregar suas encomendas na casa de vizinhos ou no escritório onde a mãe dela trabalha.
“Meses atrás, eu comecei a usar a opção de entregar na agência dos Correios perto da minha casa, porque isso é previsto no site. Eu recebi duas vezes, mas as seguintes colocaram um aviso de ‘destinatário desconhecido’ e devolveram para o remetente”, contou.
Procurados, os Correios disseram que as entregas “encontram-se regulares” nos endereços dos bairros da Brasilândia, Itaim Paulista e Paraisópolis, questionados pela reportagem a partir da reclamação de moradores. “Para uma avaliação pontual, é necessário informar detalhes como o código de rastreamento dos objetos reclamados”, informou o serviço de entregas por meio de nota.
Os Correios disseram ainda que “existem algumas localidades com modalidade de entrega diferenciada de encomendas, seja por não apresentarem condições de segurança favoráveis aos trabalhadores, clientes e encomendas ou, ainda, por não atenderem às condições para a entrega domiciliária (conforme previsto na Lei 6.538/78 (Lei Postal) e Portaria MCOM nº 2.729, de 28 de maio de 2021).”
Nesses locais, explicam, os clientes devem fazer a retirada da encomenda em unidades indicadas.
De acordo com o coordenador do MBA de marketing digital na FGV, Andre Miceli, todos os aplicativos terão espaço para atuar em contextos sociais e resolver problemas como esses.
“Qualquer grupo social que se reúna sobre uma característica em comum cria espaço para uma oferta de conteúdo, porque ele usa o assunto para capturar a atenção das pessoas daquele grupo. Do ponto de vista de negócio, faz todo o sentido e a gente deve ver uma expansão desse tipo de solução nos próximos anos”, afirmou.
Segundo o professor da FGV, ainda há um grande espaço para o crescimento desse tipo de iniciativa. Ele afirma, por exemplo, que o iFood está presente em 2 mil cidades do país, os Correios em pouco mais de 2 mil e a Loggi em 600. Enquanto o país tem 5.570 municípios.
“Será cada vez mais comum ver empresas grandes tentando participar desses projetos. Mas as iniciativas locais levam vantagem porque ela tem a linguagem, o conhecimento daquele grupo e a noção do que desperta o interesse dela. Essa proximidade faz toda a diferença”, disse Andre Miceli.
Bolsa de Valores das Favelas
O G10 Favelas, que reúne as lideranças das dez maiores favelas do Brasil, lançou, em parceria com a gestora de investimentos DIVI•hub, na sexta-feira (19), a Bolsa de Valores das Favelas. Por meio da plataforma, que tem a permissão da Comissão de Valores Mobiliários para regular os ativos, tornou-se possível comprar frações de empresas que operam nas favelas brasileiras, a partir de R$ 10.
No dia seguinte, sábado (20/11), a favela de Paraisópolis recebeu celebridades como o apresentador Luciano Huck, a Luiza Helena Trajano, dona da rede Magazine Luiza, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, para a cerimônia de inauguração da venda de ações. O evento teve direito aos tradicionais touro e sino que simbolizam as bolsas de Nova York e, mais recentemente, também a B3, em São Paulo. Além de atrair investidores para os projetos desenvolvidos dentro das favelas.
Gilson Rodrigues, fundador do G10 Favelas e presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, disse que a intenção do grupo é construir uma ponte entre as startups da favela e os empreendedores.
“São 18 iniciativas que podem ser escaladas por esses investidores para que ambos possam estar bem. Queremos organizar, dar mentoria e captar recursos. Nossa projeção para o Favela Brasil Xpress é instalar 50 novas bases e fazer 1 milhão de entregas nos primeiros 6 meses de 2022”, afirmou.
Gilson afirma que a favela tem um grande potencial de consumo, mas hoje se sente bloqueada por não ter o conforto de receber suas encomendas em casa.
Nosso mercado é potente e, se estimulado, pode ser ainda maior. A forma que a gente vê para escalar é por meio de franquias. De forma que empreendedores de outras favelas possam ter acesso ao nosso sistema e implantar em suas comunidades”, afirmou.
No plano de expansão do Favela Brasil Xpress, ainda está previsto um serviço de coleta e entrega de mercadorias nas casas dos pequenos empreendedores da favela. Dessa forma, por exemplo, uma mulher que confecciona panos de prato poderá disponibilizar seus produtos em um grande marketplace e contar com um serviço de entrega ágil e barato.
Além da opção de franquias, a própria Favela Brasil Xpress poderá mandar uma equipe para criar uma base e montar uma estrutura na região.
“A insegurança não se combate com segurança, mas com convivência. Por isso, vamos trazer empresas de fora da comunidade, com o olhar de que a favela é uma potência e tem oportunidade. Todos vão querer investir porque vale a pena, não por caridade”, concluiu o idealizador Giva Pereira.