Yzabel foi enganada, com uso de tecnologia ‘deepfake’, em um falso relacionamento com um golpista. Ao longo de inúmeras conversas, ela se apaixonou por um suposto cirurgião de boa aparência. Ao descobrir que foi enganada, lançou-se numa missão: encontrar o verdadeiro rosto de seu amor virtual.
Yzabel estava buscando sua ‘cara metade’ em aplicativos de namoro, mas foi enganada pela tecnologia “deepfake” em um falso relacionamento com um golpista — Foto: YZABEL DZISKY
Quem nunca se apaixonou perdidamente? E quando isso acontece em relação a alguém que conhecemos em um app de namoro?
Mas, em tempos de relacionamentos virtuais, as consequências podem ser devastadoras, como mostra o recém-lançado documentário “O golpista do Tinder”, disponível na plataforma de streaming Netflix, que conta a história de três mulheres que dizem ter sido traídas por um homem, Simon Leviev, que conheceram através do aplicativo. Elas acabaram passando quantias enormes de dinheiro a ele — é difícil de confirmar exatamente quanto, mas alguns estimam na casa dos milhões.
Assim como essas mulheres — e milhares de pessoas no mundo —, a atriz e cineasta francesa Yzabel Dzisky foi uma das pessoas que se aventuraram pelo mundo do namoro online.
Até se dar conta de que havia se apaixonado por um deepfake.
Em entrevista à BBC, Yzabel conta como caiu no chamado catfishing (termo em inglês usado para se referir a pessoas que criam perfis falsos na internet para se relacionar com outras por motivos emocionais ou financeiros), como a trapaça a deixou arrasada e como ela conseguiu seguir em frente para encontrar a verdade que espera poder curar seu coração partido.
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A seguir, conheça a história de Yzabel.
Em 2017, Yzabel tinha 46 anos, estava solteira e queria fazer um documentário sobre aplicativos de namoro.
O plano era entrevistar pessoas aleatórias e procurar potenciais colaboradores. Mas essa ideia de documentário também parecia uma oportunidade de encontrar seu grande amor.
“Meus amigos solteiros estavam me contando sobre todas aquelas histórias engraçadas de amor e seus encontros nesses aplicativos. Primeiro, pensei que só entrevistaria as pessoas. Mas depois talvez eu também pudesse encontrar meu grande amor ali”, diz.
Yzabel se deparou com o perfil de um homem bonito. Era ‘Tony’ (Colby) — pelo menos esse era o nome de apresentação — um cirurgião que vivia em Los Angeles, mas planejando se mudar para a França em breve.
Imediamente, ela deslizou o dedo para a direita, curtindo o potencial pretendente. E a atração era mútua — eles eram um ‘match’.
Yzabel e Tony conversaram por mais de uma semana e ela ficou impressionada com as coincidências.
“As mulheres gostam de coincidências e eu o achei muito romântico. Fiquei empolgada com essa história de amor.”
Em seguida, ela queria vê-lo em uma chamada de vídeo.
Foi necessária uma videochamada em uma tela maior para Yzabel perceber que estava conversando com um deepfake — Foto: BBC
Em uma noite com as amigas, Yzabel ligou para ‘Tony’ em seu celular e, durante essa videochamada de 10 minutos, mostrou o rosto dele para as amigas.
Era uma cabeça que mal se movia emoldurada em uma pequena tela de celular.
“Quando você está em uma chamada de vídeo, na maioria das vezes você tende a olhar para si mesma e tentar ficar bonita em vez de focar na pessoa na chamada, então não estava prestando muita atenção aos detalhes”, lembra Yzabel.
Eles mantiveram contato com mensagens e videochamadas curtas até que ‘Tony’ de repente parou de responder sem dar motivo.
Quando finalmente respondeu, disse que não era ‘Tony’, mas que seu nome verdadeiro era ‘Murat’.
“Fiquei chocada, mais uma coincidência, porque o nome do meu ex-marido também é Murat. Ele disse que era turco e morava em Istambul. Nem fiquei brava, apenas surpresa”.
“Quando perguntei por que ele mentiu para mim, disse que era porque tinha origem do Oriente Médio (árabe), e achou que eu teria reservas por causa disso. Mas falei que não tinha problema nenhum com isso, pois meu ex-marido também tem ascendência árabe-francesa-turca. Falei que se tratava de uma grande coincidência e que ele não deveria se incomodar.”
“Decidi pesquisar no Google, havia muitas coisas sobre ele. Podia ver as fotos, vídeos em turco. Ele estava em todos os lugares — até na TV. Não tinha dúvidas sobre ele — ele era real e um cirurgião conhecido.”
Tudo parecia estar indo bem para ela. Videochamadas curtas ocasionais e cartas de amor intensas se seguiram — assim como a promessa de que ‘ele viria vê-la em breve’.
Mas primeiro, disse ‘Murat’, ele tinha que visitar Xangai, na China. Foi essa viagem que deixou Yzabel intrigada.
“Ele me ligou dizendo que estava em Xangai para comprar equipamentos médicos. Contou que seu cartão de crédito não estava funcionando e pediu minha ajuda — queria que eu lhe enviasse 3 mil euros (R$ 18 mil).” Depois disso, disse ‘Murat’, ele voaria para Paris para finalmente conhecer Yzabel pessoalmente.
Ela ficou surpresa que um cirurgião conhecido lhe estava pedindo dinheiro e falou com um amigo sobre isso.
Os dois ficaram desconfiados, mas ainda assim, ela decidiu enviar 200 euros (R$ 1,2 mil) a ‘Murat’ por meio de uma plataforma de transferência de dinheiro internacional.
Possibilidade de catfishing e golpes online começaram a passar pela cabeça de Yzabel — Foto: Getty Images
“Não sei por que fiz isso — pensei que talvez os cartões de crédito emitidos na Turquia tivessem problemas lá. Ele me agradeceu e me mostrou sua passagem de avião de Xangai para Paris. Estaria aqui em três dias.”
Quando o grande dia chegou, Yzabel estava animada para conhecê-lo cara a cara pela primeira vez.
“Então, fui ao aeroporto para encontrá-lo. Esperei e esperei… e ele não apareceu”, conta.
Yzabel faz uma pausa e respira fundo ao falar sobre aquele dia no aeroporto.
“Tentei contatá-lo novamente, ele não respondeu. Depois houve dias de silêncio. Fiquei extremamente irritada — por que ele não respondia? Apesar disso, fui gentil com ele, queria que ele respondesse. Precisava de respostas.”
A possibilidade de ‘catfishing’ e golpes online começou a passar pela sua cabeça, mas ela relutou em aceitar essa possibilidade.
“Pensei ‘É impossível, eu o vi em videochamadas — ele era real. Meus amigos o viram, meus filhos o viram’. Achei que estava tendo um problema neurológico. Isso não poderia estar acontecendo”, acrescenta.
Alguns dias depois, ‘Murat’ entrou em contato novamente, mas dessa vez Yzabel queria vê-lo em uma tela maior, então conectada através de seu computador.
“A qualidade era ruim; pensei que talvez a conexão dele não fosse boa. Houve também um atraso na transmissão. Ouvi um ‘clique, clique, clique’ quando ele estava falando comigo. Inclinei-me em direção à tela, olhei de perto, pude ver que o vídeo estava congelando um pouco.”
Ela precisava de uma imagem mais nítida e um amigo editor de vídeo a ajudou. Ele lhe disse para conferir um vídeo chamado ‘Obama Deepfake’ no YouTube.
Yzabel encontrou muitas semelhanças entre o que viu em suas ligações e esses vídeos deepfake online. E finalmente aceitou que havia sido enganada — o vídeo e o áudio obviamente foram adulterados.
“Eu me senti envergonhada, estúpida, ingênua. Sou uma mulher com espírito rock’n’roll, nunca me deixei ficar para baixo. Mas me senti roubada com essa história — meus sentimentos foram roubados e minha alma e meu espírito, estuprados. Estávamos escrevendo coisas lindas um para o outro — acreditei nele. Mostrei a ele meus filhos.”
Sua fúria a empurrou para confrontar a pessoa atrás da tela, mas ele ficou em silêncio novamente.
Yzabel continuou escrevendo e até se ofereceu para pagar mais para retomar os bate-papos com ele. Quando finalmente conseguiu fazer outra videochamada, ouviu os mesmos cliques novamente.
Era o momento de confrontá-lo.
“Disse: ‘Quem é você? Eu sei que você não é ‘Murat’, mas quem é você?’ Ele ficou em silêncio por um tempo, então perguntou por que eu estava fazendo isso. E então desligou.”
Mas, em seguida, surpreendentemente, respondeu dizendo que seu nome era David e que ele era um hacker de 20 anos da Nigéria.
Casos de golpes de catfishing e romance parecem ter aumentado durante pandemia — Foto: Getty Images
“Perguntei por que ele estava fazendo aquilo. ‘Você me fez apaixonar por você, você pediu meu dinheiro’. Ele disse que tinha conseguido muito dinheiro de pessoas e que fazia parte de uma rede muito grande especializada nesse tipo de crime. Até fizemos uma videochamada. Eu o vi com um amigo. Ele me disse que ficou rico com essas contas falsas, queria ser jogador de futebol e estudar no Canadá.”
A identidade de ‘Murat’, acrescentou David, havia sido inventada ao acaso, sem nenhuma ideia do fascínio que a ficção teria para Yzabel por causa das coincidências.
Ela ficou arrasada, mas não conseguia deixar de lado o amor ‘real’ que sentia pelo ‘falso’ ‘Murat’.
Buscando um desfecho para sua história de amor virtual, ela partiu para encontrar o verdadeiro homem cuja identidade havia sido roubada. Yzabel encontrou um número de telefone em uma de suas contas nas redes sociais e ligou para ele.
A princípio, o cirurgião turco rejeitou as mensagens. Ele estava ciente das inúmeras contas falsas abertas em seu nome, mas não queria falar sobre os golpes.
“Decidi enviar uma mensagem de vídeo. Disse: ‘Sou real, acho que você foi hackeado, não quero fazer nenhum mal — temos muito em comum. Gostaria de conhecê-lo e dar-lhe todas as provas que tenho.'”
Yzabel disse a Murat que planejava visitar Istambul e ele concordou em conhecê-la. Ela imediatamente reservou uma passagem de avião para a Turquia.
Yzabel em Istambul — Foto: YZABEL DZISKY
“O Bósforo era lindo, magnífico. Mas eu estava me sentindo muito solitária…”, lembra ela.
O cirurgião, aparentemente, não tinha certeza se queria conhecê-la.
“Então, fui para o hospital. Foi muito difícil para mim, por meses, eu pensei que estava falando com ele. Quando a porta se abriu, a secretária dele disse que ele estava me esperando. E lá… eu o vi pelo primeira vez, ele era real…”
Yzabel fez uma pausa na memória de seu primeiro encontro com ele, enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto e sua voz se torna trêmula.
“Ele não sabia que eu tinha sentimentos por ele, mas ele foi muito acolhedor. Tentei não fazer um drama com isso. Tentei não mostrar meus sentimentos, mas meu coração estava… ficava dizendo a mim mesma que não era real, que não era ele”.
“Então eu mostrei a ele toda a papelada, as capturas de tela das conversas que tive com o hacker, para que ele pudesse compartilhar com a polícia. Sua fisionomia começou a mudar. E ele disse que não queria deixar seus pacientes esperando, então nós concordamos em nos encontrar mais tarde para um jantar.”
Yzabel disse que eles passaram uma linda noite conversando sobre o que havia acontecido. Ela decidiu fazer um longa-metragem sobre sua história e entrou em contato com alguns produtores e atores na Turquia.
E acabou visitando Istambul e o cirurgião mais algumas vezes.
“Mantivemos contato por um tempo, mas chegou ao fim eventualmente. Foi lindo, mas ele foi muito assediado pelas contas falsas e histórias de golpes. Ele já estava farto.”
A BBC entrou em contato com o cirurgião e seu advogado na Turquia. Eles se recusaram a comentar sobre esse caso em particular, mas disseram que estão tentando alertar as pessoas sobre as contas falsas criadas em nome do médico. Não era a primeira vez que ele era abordado por alguém que passou por experiência semelhante.
Também foram apresentadas queixas criminais, mas obter justiça para esse tipo de crime cibernético na Turquia é complicado devido à falta de provas suficientes. É difícil rastrear a origem das contas falsas, pois a maioria é originária do exterior.
Yzabel estava com o coração partido. Agora, ela quer um desfecho para sua história e espera conseguir isso com seu filme.
Ela aproveita para deixar uma mensagem para quem é enganado por deepfakes ou catfishing.
“Temos que lutar. Precisamos processar esses amantes fantasmas. Acho que não falamos o suficiente sobre isso porque temos vergonha”, diz ela.
Apesar do constrangimento de perder dinheiro com esses golpes, Yzabel incentiva as pessoas a compartilhar suas experiências com familiares e amigos.
“Temos que encarar a realidade de frente. Estamos nesses aplicativos porque queremos ser amados e queremos amar. São como drogas, você quer mais e mais. Você acaba se perdendo nesse afeto virtual”.
“Essas plataformas são boas para conhecer novas pessoas, mas você deve conhecê-las pessoalmente o mais rápido possível. A conexão real não deve ser perdida, porque se for, você começa a se sentir muito solitária.”
*Murat não é o nome verdadeiro do cirurgião — sua identidade foi protegida a seu pedido.
O que é catfishing e como evitá-lo?
‘Catfishing’ é quando alguém cria um perfil online falso para enganar as pessoas que estão procurando por amor, geralmente para tirar dinheiro delas.
A polícia do Reino Unido alerta para golpes românticos, dizendo que criminosos geralmente fazem um grande esforço para ganhar confiança e convencer seus alvos de que estão em um relacionamento genuíno. Eles usam a linguagem para manipular, persuadir e explorar para que os pedidos de dinheiro não soem alarmes.
Para evitar cair em um golpe de catfishing:
- Faça muitas perguntas. Não confie simplesmente nas informações fornecidas no perfil online de alguém
- Use a internet como uma ferramenta para buscar informações em outros lugares e as contas de mídia social da pessoa com quem você está conversando
- Fale com amigos e familiares. Ouça outras pessoas sobre se o perfil com quem você conversa parece genuíno
- Converse dentro do site de namoro. Evite fornecer seu número pessoal ou e-mail antes de realmente conhecer alguém
- Nunca dê dinheiro. Se alguém pedir dinheiro em um site de namoro, não envie para eles
O que é deepfake?
Deepfake é um termo usado genericamente para se referir a qualquer vídeo em que os rostos foram trocados ou alterados digitalmente com a ajuda de inteligência artificial (IA). Existem muitos aplicativos e filtros diferentes disponíveis para trocar rostos em fotos e vídeos de maneiras muito realistas, mas nem todos usam IA. O ‘deep’ vem do Deep Learning, um ramo da IA que usa algo conhecido como redes neutras. As redes neutras são um tipo de técnica de aprendizado de máquina que tem alguma semelhança com o funcionamento do cérebro humano.
Fonte: BBC, Age UK, UK Finance, Polícia do Reino Unido