“Tem alguns setores da imprensa que não querem que eu volte a ser candidato. Porque se eu voltar vou regular os meios de comunicação deste país.” A frase dita no dia 26 de agosto do ano passado, em entrevista à rádio baiana Metrópole, foi apenas uma amostra do discurso que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já não esconde mais. O PT decidiu assumir abertamente que pretende tutelar a mídia no Brasil se vencer as eleições de outubro.
Antes da fala aos baianos, Lula já havia tocado no assunto outras três vezes naquela semana, em viagens ao Rio Grande do Norte, Maranhão e Ceará. Trata-se de uma promessa à militância do partido que tem sido repetida desde novembro de 2019, no encontro nacional da sigla. “Entendo que democratizar a comunicação é fazer a regulação constitucional, que está parada há 31 anos, à espera de um momento de coragem do Congresso”, disse na ocasião.
Desejo antigo
Antes de mais nada, é preciso esclarecer o que significa regulamentar a atividade dos meios de comunicação e o que o PT, de fato, já tentou no passado. Há dois pilares nessa discussão: a regulação econômica e a moderação de conteúdo. No primeiro caso, o partido jamais escondeu o desejo de tirar o poder de alguns grupos majoritários de mídia — a principal obsessão sempre foi sangrar financeiramente a Globo. No segundo, o termo correto é censura, como já existiu no Brasil durante o regime militar e permanece em vigor em países como China, Venezuela e Cuba — ou seja, emitir opiniões contra o governo pode levar à prisão.
Há uma série de exemplos pelo mundo de regulação de mercado: nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e até na Argentina. Em suma, há órgãos públicos que impedem a propriedade cruzada de veículos de comunicação: uma mesma empresa não pode ser dona de várias emissoras de TV, rádios, jornais e revistas.
No caso americano, a agência é a Federal Communications Commission (FCC), que, contudo, não influencia no produto publicado — eventuais abusos são analisados pela Justiça. São feitas ainda discussões no mundo todo sobre o que pode ser tipificado como fake news e suas eventuais sanções.
A Argentina é um exemplo de como uma lei feita pela esquerda sobre o tema — Ley de Medios — pode ser desastrosa. Da lavra da ex-presidente Cristina Kirchner, em 2009, a legislação obrigava as TVs abertas a exibirem majoritariamente produções nacionais e, no caso de emissoras menores, um terço dos programas deveria ser sobre o noticiário da cidade. O texto também impunha restrições de mercado, numa tentativa de vingança de Cristina contra o Grupo Clarín e de estrangular novos críticos do seu governo. Parte das medidas foi revogada na gestão de Mauricio Macri, mas um grande estrago foi feito no país.
Seita unida
Há décadas, Lula e outros dirigentes do PT, como José Dirceu, José Genoino, Rui Falcão e Gleisi Hoffmann, atacam os conglomerados de mídia. Em 2014, a fachada da Editora Abril foi alvo de depredação por causa de uma capa profética de Veja: às vésperas da eleição, uma foto de Lula e Dilma Rousseff era acompanhada pelo título “Eles sabiam de tudo”. A campanha petista ainda conseguiu um direito de resposta no site da revista. Mal sabia o juiz que aquela era literalmente a ponta de um iceberg de um esquema de corrupção que seria batizado de Petrolão e levaria mais de 150 pessoas aos tribunais.
Redes sociais
A despeito de tentar tirar o dinheiro das mãos das empresas de comunicação — veja o vídeo abaixo no qual Lula cita os empresários Silvio Santos (SBT), Edir Macedo (Record) e a família Marinho (Globo) —, é a possibilidade de controlar conteúdos o que move os instintos da esquerda. Não à toa, Gleisi Hoffmann sugeriu a suspensão do aplicativo WhatsApp nas eleições de 2018, quando o jornal Folha de S.Paulo publicou que havia um esquema de disparos de mensagens em massa feito pela campanha de Jair Bolsonaro. Ironicamente, tempos depois, Fernando Haddad foi condenado pelo uso da ferramenta.
Os recentes discursos do PT e seus satélites mostram que a trincheira atual está na internet e passaram a estender as rédeas para as redes sociais.
“Vamos ter que regulamentar as redes sociais, a internet, colocar parâmetros”, disse Lula em novembro, durante seu tour pela Europa. “Temos a internet, que é uma coisa extraordinária para a sociedade, não pode ser um antro de mentiras”, afirmou à Rádio Tupi, do Rio de Janeiro
É importante frisar que, quando o assunto são as redes sociais, o PT não está sozinho. O principal aliado se chama Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele defende abertamente o controle das publicações nas plataformas das chamadas big techs — como Twitter, Instagram, Facebook, entre outros. Seu sucessor no comando da Justiça Eleitoral, Alexandre de Moraes, segue a mesma cartilha. É ele, aliás, o responsável pelo inquérito que determinou prisões por crimes de opinião e o banimento de contas nas redes sociais no Brasil.
Ovo da serpente
O projeto de tutela da imprensa foi gestado duas vezes pelo governo Lula. A primeira ocorreu logo depois de eleito, em 2003, com o Conselho Federal de Jornalismo. Havia até uma sigla: CFJ. A proposta do Palácio do Planalto, publicada no Diário Oficial da União e conduzida pelos ex-auxiliares Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini e Ricardo Kotscho, dizia que a função do órgão seria “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício da profissão, interferir nas faculdades de comunicação social e, inclusive, punir jornalistas. Um modelo mais ditatorial seria impossível.
Apesar de toda a popularidade de Lula nas redações de jornais, formou-se um consenso de que o texto extrapolou. Houve um debate acalorado no programa Dois a Um, nas madrugadas do SBT, entre Kotscho, então secretário de Imprensa do governo, e Clóvis Rossi, colunista da Folha de S.Paulo. O último argumentou que se tratava da “mania de achar que a sociedade precisa de tutela”. Kotscho reclamava que os jornalistas precisavam de limites.
O pano de fundo dessa guinada contra a mídia fora uma reportagem do New York Times, assinada pelo correspondente Larry Rohter, na qual ele dizia que Lula abusava de bebidas alcoólicas. Rohter chegou a ter o visto revogado.
O projeto não prosperou por falta de apoio no Congresso Nacional, e, na sequência, estouraram as primeiras denúncias do escândalo de desvios nos Correios. Os políticos de Brasília tinham algo mais grave para lidar: o embrião do mensalão. E o PT desistiu da encrenca com a imprensa.
Alguns anos depois, reeleito, Lula escolheu o ex-terrorista Franklin Martins para elaborar um novo plano de regulamentação de mídia. Em 2010, durante um evento da TV Cultura, o ministro afirmou, sem rodeios, que a proposta não mirava somente a concentração econômica, mas deveria ser expandida ao material publicado. “Não é um ajuste só de atores econômicos”, disse. “Isso tem a ver com a oferta da informação, com o debate público e o exercício da cidadania.”
Franklin Martins avisou: “A regulação será feita, ou num clima de entendimento ou de enfrentamento. Vai acontecer de qualquer jeito”. Ele deixou o projeto impresso na mesa da futura presidente Dilma Rousseff, que não deu andamento, à revelia do PT e de Lula.
Mais de uma década depois, o PT decidiu escalar Franklin Martins para tocar a minuta para a área de comunicação da campanha de Lula em 2022. É possível que ela já esteja pronta há anos.
Por Sílvio Ramalho
Revista Oeste