“Desde o pós-guerra o Brasil não teve uma década tão efervescente e dinâmica em termos de migração e refúgio”, afirma Leonardo Cavalcanti, coordenador científico do OBMigra e professor da UnB
Em 2010, o censo mostrou que quase 600 mil imigrantes viviam no Brasil –principalmente portugueses e outros europeus. Dez anos depois, esse número mais que dobrou, chegando a 1,3 milhão, segundo um estudo apresentado nesta terça-feira (7) pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).
A grande diferença de volume, porém, é só uma das transformações ocorridas nesta última década. Os dados também revelam uma diferença radical no perfil desse estrangeiro que veio morar no Brasil: os países de origem, a proporção de mulheres, o salário médio, a distribuição pelo país, tudo isso mudou nesse espaço de dez anos. Desde o pós-guerra o Brasil não teve uma década tão efervescente e dinâmica em termos de migração e refúgio”, afirma Leonardo Cavalcanti, coordenador científico do OBMigra e professor da UNB.Foi um período também de mudança na legislação sobre o tema, com a substituição do Estatuto do Estrangeiro, da época da ditadura militar, pela Lei de Migração, em 2017. Essa transformação jurídica foi impulsionada pelo próprio aumento na vinda de imigrantes ao país, afirma Duval Fernandes, professor da PUC Minas. “A lei de migração traz grandes novidades, ao olhar o imigrante como um sujeito de direitos.”
Para traçar o panorama da imigração no Brasil entre 2011 e 2020, a pesquisa do Observatório analisou bases de dados do governo, incluindo os refugiados reconhecidos, os solicitantes de refúgio e os demais imigrantes.
Para Tadeu de Oliveira, coordenador estatístico do OBMigra, apesar do grande aumento nas chegadas nos últimos anos, o número –menos de 1% da população brasileira– é baixo “considerando um país com a extensão territorial e o tamanho da economia do Brasil”. “Vivemos uma transição demográfica, avançando para o envelhecimento e para a redução da população. A imigração tem o potencial de contribuir para o nosso país. A gente consegue absorver mais”, afirma.
Veja algumas revelações do estudo:
DOS EUROPEUS AOS LATINO-AMERICANOS
Se em 2010 a maioria dos imigrantes que viviam no Brasil eram de Portugal, dez anos depois a Venezuela e o Haiti são os dois primeiros países de origem. Dos dez principais fluxos migratórios para o território brasileiro, só dois são de países do Norte global: França e EUA.
Essa mudança acompanha uma tendência mundial, com as migrações Sul-Sul se sobrepondo às migrações do Sul para o Norte Global. As barreiras implantadas pelos governos ricos para vetar a entrada de imigrantes são uma das explicações para o fenômeno. “De um país de emigração, passamos a ser também um país de imigração e de trânsito, ou seja, um caminho para os que querem ir para outros lugares”, diz Duval Fernandes, da PUC Minas.
Nos primeiros cinco anos da década, a nacionalidade dos recém-chegados já começou a mudar, com a vinda de muitos sul-americanos, haitianos, senegaleses, congoleses e bengalis. Da segunda metade em diante, os haitianos e venezuelanos foram responsáveis pela consolidação da imigração latino-americana e caribenha.
MAIS ESPALHADOS PELO BRASIL
Em 2010, mais de 60% dos imigrantes se concentravam nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, os dois estados juntos reduziram sua participação para 38%, com uma distribuição dos imigrantes por outros estados.
Roraima, na fronteira com a Venezuela, foi o principal deles, com 21,9%. Os estados da região Sul, com 16,8%, também passaram a receber muitos imigrantes, assim como Amazonas, Minas Gerais e Bahia.
MIGRAÇÃO MAIS FEMININA
Acompanhando outra tendência global, o Brasil vivenciou uma “feminização” das migrações, com mais mulheres chegando, especialmente haitianas e venezuelanas. Apesar de os homens ainda serem maioria, o perfil mais familiar desses dois fluxos vêm aumentando a proporção de imigrantes do sexo feminino.
No caso das refugiadas e solicitantes de refúgio, sua participação dobrou de 2013 para 2019, de 22% para 46%.
Essa mudança não significa, porém, que elas estejam atingindo um maior grau de igualdade em relação aos homens. Os dados mostram que as imigrantes recebem 70% do valor do salário dos trabalhadores do sexo masculino, e que sua inserção laboral acontece em empresas com alta exploração da mão de obra.
MAIS NEGROS E PARDOS
A diversificação dos países de origem levou a uma mudança no perfil racial dos imigrantes. Se em 2011, os pretos e pardos representavam 13,9% do total daqueles que estavam no mercado formal de trabalho, no fim da década eles já são maioria (54,4%).
Nos primeiros anos, a chegada de pessoas de países africanos e, especialmente do Haiti, fez com que a proporção de negros subisse. O crescimento de trabalhadores de cor parda ocorreu a partir de 2018, com os venezuelanos. Mesmo sendo minoria, os brancos receberam nesses dez anos salários muito superiores aos demais.
CASAMENTOS MISTOS
Homens imigrantes se casam mais com mulheres brasileiras do que o contrário. Dos 65 mil casamentos com ao menos um dos cônjuges imigrante na década, 62,2% foi esse tipo de arranjo. Em seguida, vêm os homens brasileiros casados com mulheres imigrantes (28,6%) e, por último, os casamentos entre dois imigrantes (9,2%).
Esse último grupo vem crescendo desde 2017, mas ainda é inferior às uniões mistas. Para Tadeu Oliveira, uma hipótese é que as mulheres imigrantes esperam mais tempo, até terem sua inserção mais definida na sociedade brasileira, para optarem pelo casamento e pela maternidade.
ESCOLARIDADE CAI
No começo da década, entre os imigrantes no mercado formal de trabalho, a maioria (52%) tinha curso superior completo. Hoje, eles são 21,2% do total, com a escolaridade do ensino médio sendo a mais comum (44,5%) e a proporção dos sem instrução ou com fundamental incompleto tendo subido de 5,8% para 14,1%.
Essa composição reflete a entrada dos novos imigrantes vindos de países pobres ou em desenvolvimento, diferente dos fluxos anteriores, nos quais predominavam trabalhadores europeus mais escolarizados.
MAIS EMPREGO FORMAL, SALÁRIOS MAIS BAIXOS
De 2011 a 2020, o número de imigrantes no mercado formal de trabalho brasileiro triplicou, passando de 62.400 para 181.300.
O rendimento médio deles, porém, vem caindo ao longo dos anos, diferentemente da média geral, que vem se mantendo estável, observa André Simões, responsável por essa parte do estudo. “Uma explicação é a inserção ocupacional dos imigrantes, que vêm ocupando postos de trabalhos no setor agroindustrial, nos setores de abates de aves e suínos”, diz, referindo-se especialmente a haitianos e venezuelanos.
Considerando todas as nacionalidades, o rendimento mensal médio dos imigrantes (de R$ 4.900) é superior à média nacional. Mas esse número não reflete a realidade da maioria do grupo: 65% ganham até 2 salários mínimos.
A média é puxada para cima pelos altos salários de trabalhadores de algumas nacionalidades: enquanto em 2020 o rendimento médio de um norueguês no Brasil era de R$ 33.000 ao mês, o de um venezuelano era de R$ 1.521, por exemplo. Em 2019, refugiados latino-americanos tinham rendimento 53% menor que a média salarial do mercado geral.
ACESSO A BENEFÍCIOS SOCIAIS
O número de famílias com ao menos um membro imigrante registradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) subiu de 12 mil em 2012 para 132 mil em 2020. Destas, 44% recebem Bolsa Família, 21% a Tarifa Social de Energia Elétrica e 18% receberam o Auxílio Emergencial da pandemia no ano passado. Venezuelanos, haitianos, bolivianos e paraguaios são as principais nacionalidades entre os cadastrados.
MAIS CHINESES ENTRE OS EXECUTIVOS
A composição de um grupo específico de imigrantes, aqueles que se mudam para o Brasil por demanda de uma empresa local, também sofreu mudanças na última década. Geralmente são homens, com cargo de gerência, salários elevados e moradores do Sudeste. Apesar de europeus e norte-americanos ainda terem forte presença entre eles, há uma demanda crescente por trabalhadores chineses, boa parte deles trabalhando nos setores de infraestrutura para energia elétrica, telecomunicações, água, esgoto e comércio atacadista de tecnologia. Por outro lado, o número de latino-americanos entre esses executivos vem caindo.
Por Flávia Mantovani Folha Press