Dados do IBGE mostram que mesmo com o pagamento de benefícios, um em cada quatro brasileiros viveu abaixo da linha de pobreza em 2020
O olhar atento e alguma paciência ajudam Daniele Nascimento, de 23 anos, a encontrar bons dentes de alho em meio a centenas de outros, imprestáveis e cujo destino será o lixo. É a segunda vez que a mãe de gêmeos vai à Ceasa, central de comercialização de legumes e frutas na zona norte do Rio, procurar alimentos em meio às caçambas de descarte. A mãe dela, Edinalva Reis dos Santos, que estava com ela nesta sexta-feira, 3, faz o mesmo “desde que a Daniele era pequeninha”. Foi a forma que as duas – e dezenas de outras pessoas que diariamente fazem o mesmo “garimpo” – encontraram para sobreviver. Alimentam, com os restos que catam, as famílias, em meio ao desemprego, à inflação e aos preços cada vez mais altos da comida.
“Minha gravidez foi de risco e eu fiquei a maior parte do tempo internada”, conta Daniele. “Por causa disso, não consegui ir resolver e fiquei sem o auxílio emergencial. Agora tenho que colocar meus filhos no Bolsa Família, né? Eu não consegui resolver isso ainda. Estou aqui pelos meus filhos.”
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nesta sexta-feira, 3, mostram que mesmo com o pagamento de benefícios durante a pandemia, um em cada quatro brasileiros viveu abaixo da linha de pobreza em 2020.
Edinalva e Daniele moram na mesma casa em Anchieta, também na zona norte, com mais oito pessoas. Além delas, vivem no local os seis irmãos da jovem e, desde este ano, os gêmeos que ela deu à luz. A gravidez veio cerca de um mês depois de Daniele ter uma primeira gestação interrompida e do alerta da médica de que uma nova gravidez traria riscos à sua vida.
Apesar das dificuldades, Daniele consegue manter o sorriso no rosto e a simpatia. Aprendeu com a mãe que as idas semanais à Ceasa garantem um reforço importante na mesa de casa.
“Semana passada eu levei cinco sacolas. Levei batatas e a gente comeu a semana toda. Um moço deu uma melancia que estava com um machucadinho, mas a gente tirou e conseguiu levar a melancia inteira”, conta. “Agora estou pegando alho, mas vou andando e consigo pegar banana, manga. Às vezes tem uma machucadinha, que eles não vendem, mas dá pra levar.”
Edinalva, por sua vez, conta que faz isso há quase duas décadas. “Sempre vim pra catar. Eu não gosto muito de pedir, não. Eu tenho vergonha de pedir. Então eu venho, saio catando e pego o sustento pras crianças”, conta. “Tem muita coisa boa”.
Ela diz que o auxílio emergencial recebido no ano passado “ajudou um pouquinho”, mas nunca resolveu o problema. “Ganhei R$ 1.600 da primeira vez, depois R$ 600, depois R$ 370… Agora está R$ 320. Só foi diminuindo, e as coisas tudo aumentando. Você leva as coisas daqui, mas tem que cozinhar. Antes, você tem que lavar, e o custo da água está um absurdo! O gás eu pago R$ 95.”
A cerca de 50 metros dela, Maria do Carmo Vicente limpava cebolas. Aos 64 anos, ela mora sozinha e tem duas fontes de renda: a venda de alimentos que tinham o descarte como destino e o (extinto) Bolsa Família.
A idosa afirma que vai à Ceasa “de segunda a segunda”. Caminha 25 minutos da favela onde mora até o local e fica cerca de 12 horas catando frutas, legumes e o que tiver pela frente que possa ser aproveitado. Parte do que encontra ela vende – “uns pagam R$ 30, outros pagam R$ 50 por dia” -; o que não consegue revender, leva para consumo próprio.
A vida é tão difícil para ela que o dinheiro que recebe do governo volta para o governo. “Eu uso o Bolsa Família pra pagar o INSS”, relata. “Paguei ontem. Ano que vem vou dar um jeito de ir lá na Previdência pra ver o que eles vão falar comigo e se consigo me aposentar”.
A sobrinha dela, Alessandra Cristina Nunes, de 40 anos, também passou a frequentar a Ceasa em busca dos alimentos descartados. Mãe de quatro filhos e avó de três netos – todos moram na mesma casa -, ela tenta no centro de distribuição de alimentos fechar o buraco no orçamento.
“Tenho que pagar o gás e R$ 450 de aluguel. Pra isso, pego R$ 300 de pensão dos meus filhos que ganho do Estado, mais o auxílio de R$ 150. Complemento aqui para poder sobreviver”, narra.
Marcos Silva, de 30 anos, é outro que aproveita os descartes de alimentos da Ceasa, – onde trabalha há dez anos carregando caixas de um lado a outro – para alimentar a família. Ele mora em Belford Roxo junto com dois filhos, o mais velho de 10 anos.
“Tive o auxílio (emergencial), ganhava R$ 150”, conta. “Acabou em agosto, aí agora, quando mais preciso, estou me virando sozinho”.
Ele diz que a verba que recebia do governo “ajudou alguma coisa” e que o fim dela dificultou ainda mais. “Usava para um alimento que não dá pra comprar, um arroz que está um absurdo, um óleo que mal dá para cozinhar”, explica. “Aqui a gente vai se virando do jeito do pobre mesmo: aproveitando aquilo que os outros acham que é lixo, mas que para a gente já dá para se alimentar. Sempre tem uma batata, um alho, uma cebola. Às vezes está murcha, mas a gente corta a parte podre e usa a parte melhor. Peço ajuda a Deus e vou indo.”
Por Redação Jornal de Brasília