“Existem valores fundamentais, dos quais nenhuma sociedade pode se constituir árbitra ou dona, valores como a justiça, a verdade, a liberdade, a vida, a honestidade, a santidade (…). Esses são valores primários, acima de todas as concepções e de qualquer arbítrio, que cada grupo social inclui na própria cultura, reconhecendo-os, defendendo-os, promovendo-os e os propondo aos próprios membros para que os assimilem e os incluam no seu projeto de humanidade”.
Battista Mondin,
Os valores fundamentais
É impressionante a falta de maturidade no debate político atual, o que fica ainda mais exasperador quando os “especialistas”, “formadores de opinião”, os ditos “ungidos” — como os chama Thomas Sowell — começam a falar de valores. Torna-se cada vez mais alarmante a crescente normalização de ideias tipicamente autoritárias sob retóricas banais e até infantis. A dispensa cada vez mais comum daqueles princípios que servem justamente como antídoto contra as barbáries e despotismos é o novo normal de nossos dias. Tal novo senso “pós-modernista” — baseado no centralismo político e na dominância estatal — parece caminhar enamorada de uma nova espécie de tirania, uma que usa algemas de pelúcia e tapumes de arco-íris, e por isso mesmo encontra adeptos afoitos que, ao verem as purpurinas e ouvirem os discursos fofos, ignoram solenemente a essência absolutista das intenções progressistas.
Joel Pinheiro afirmou em seu recente texto satírico para a Folha de São Paulo que a liberdade de expressão “irrestrita” é um combustível para ideias extremistas e criminosas. Ele representou de forma sensacional as ideias correntes do pós-modernismo progressista de nossa era; e, não à toa, não percebendo o tom sarcástico do escrito, os elogios frondosos dos leitores do jornal ao artigo pró-autoritarismo deu aquele ar nauseabundo, um climão de porão soviético para a página.
Dentre os absurdos propostos à esmo pela sátira de Joel, está a criação de um “comitê de notáveis”, representado por todas as minorias sociais existentes, a fim de julgar o que deve ou não ser dito em podcasts, vídeos e artigos. Ele reflete exatamente o que grande parte da mídia pede em segredo nas redações, nas reuniões a portas fechadas, naquele grupo de WhatsApp dos mais íntimos, de forma ainda um tanto quanto acanhada, é verdade, embora não haja dúvidas de que nosso mainstream sonha excitado com um órgão de controle. Atila Imarino pediu isso com todas as letras — e sem tom sarcástico.
Liberdade de expressão impõe responsabilidade
No fundo essa alegoria levantada pelo colunista da Folha é o boi de piranha do progressismo, pois desde quando a liberdade de expressão passou a ser a manta política das sociedades ocidentais livres, ela teve freios — o que não é o mesmo que censura. A liberdade de expressão não impede processos de injúria, difamação, muito menos a condenação judicial e retratação pública ante os exageros. Assim sendo, a falta de impedimento e punições legais a difamadores e agressores é um discurso oco. Todos podem ser punidos — depois de um julgamento justo — por ter usado da sua liberdade de para atacar abusivamente a honra de alguém.
“A quem interessa a liberdade irrestrita?”, eis o título do artigo do Joel. E eis também um questionamento instigante quando falamos de valores, pois quando defendemos ideias, diria Ludwig von Mises, as defendemos porque acreditamos em sua validade intrínseca. Defendemos o fim da escravidão não somente porque gostamos dos negros, mas porque a escravidão é errada em si mesma, não importando contra quem ela seja praticada. Defende-se a isonomia do direito não porque gostamos de determinados indivíduos de uma sociedade, mas porque é preciso um princípio de igualdade judicial para se alcançar a justiça possível nas instituições da nação.
A ditadura autorizada
“Quando um branco questiona consensos estabelecidos da pauta antirracista, isso não é liberdade de expressão, é racismo”, diz Joel. A parte bizarra disso tudo, e que Joel captou com bom tato, é que voltamos a ter que reafirmar a inegociabilidade da liberdade de expressão dos indivíduos. Liberdade essa que Joel “defendeu” nos seguintes termos: “A liberdade de expressão é um valor inegociável, mas é preciso impor limites”. Pitoresco, pois consigo ver os ditadores populistas do século passado dizendo isso sem nenhuma parcimônia.
A pergunta “a quem interessa” demonstra exatamente a infantilidade e o autoritarismo das ideias pós-modernistas. No seu cerne está a concepção de que o Estado — herói máximo na busca pela Justiça Social — deve regular princípios, resguardar certos benefícios, dar prioridades e garantias a determinados grupos em detrimento de outros. Tudo isso mostra como a universalidade dos direitos mais básicos foram simplesmente trocados em nome de um controle ideológico do debate e da sociedade.
Por isso, afirmo que o debate político moderno é um grande engodo, que a maioria de seus debatedores parecem crianças mimadas que, ao menor sinal de contrariedade às suas sacrossantas ideologias, pedem para que a mamãe Estado intervenha e cale o amiguinho que o ofende.
No trecho mais aberrante do texto de Joel, ele assim diz:
“Poderíamos formar algo como um comitê de notáveis, apenas com referências indiscutíveis das ciências (exatas, biológicas e humanas), com a devida representatividade de todas as minorias sociais, para julgar previamente artigos, podcasts ou vídeos que possam ter conteúdo problemático. É isso ou a barbárie. Aliás, se nada for feito, e rápido, contra aplicativos como o Telegram, Bolsonaro pode até vencer as eleições. Estão vendo onde leva essa ‘liberdade’?”.
Se a liberdade de expressão de fato significa algo, é justamente ter que tolerar o quase intolerável em nome de um amadurecimento social. Se liberdade de expressão não significa ter que ouvir absurdos, teorias da conspiração, fanatismos religiosos e políticos, e ainda assim ter a maturidade humana de seguir adiante buscando consertar as mentiras através de um debate franco de ideias, então ela não vale mais do que as promessas de castidade de um devasso.
Os histéricos progressistas se apegam ao sentido de “necessidade” de “obrigatoriedade” e justificam ideias autoritárias sobre um falso paradigma de “liberdade vs. segurança”. Como se só tivéssemos duas escolhas: atrofiar nossas liberdades ou sucumbir num apocalipse político. Em uma criança de 4 anos tal apelo por segurança paterna é fofo, num colunista da Folha como o Atila Iamarino, é patético.
O iluminismo obscuro
O ministro do STF Luis Roberto Barroso diz constantemente que precisamos de um novo iluminismo. Sua tese de “iluminismo” judicial, em suma, diz que quando existe uma demanda social não legislada, ou seja, que a Câmara dos Deputados não tornou lei, a Suprema Corte — e outros tribunais de Estado — podem “quebrar o galho” da população e fazer tais demandas se tornarem leis, independentemente da vontade dos legisladores. Os togados despontam como iluminados, os “ungidos”, o “comitê de notáveis”; eles sabem o que precisamos mesmo que nós não queiramos o que eles dizem que precisamos. Mais democrático que isso somente um Gulag soviético.
É assim que atualmente age o mainstream no geral. Eles decidem o que injetamos em nossos corpos, como devemos cuidar de nossos filhos e o que autorizaremos injetar neles também, o que devemos falar nas redes sociais, quais críticas devemos ou não externar, qual aplicativo de troca de mensagens podemos usar, até que ponto podemos ser livres sem ferir um grupo e seu lugar de fala. Afinal, eles são iluminados, eles sabem o que queremos antes mesmo que passamos a querer. Aí jaz uma democracia onde um comitê de notáveis — “apenas com referências indiscutíveis das ciências (exatas, biológicas e humanas)” ˗ decide o que queremos, quais são os limites de nossa liberdade e demais direitos… como se chama isso mesmo?… ah é, ditadura!
Por Pedro Henrique Alves
Revista Oeste