Durante o episódio de terror que enfrentamos no final da noite de ontem (17) e início da madrugada de hoje (18), ficou nitidamente comprovado que o ser humano se diverte com as desgraças. Entre o que foi divulgado nas redes sociais e o que era verdade sobre os fatos ocorridos em Guarapuava durante o assalto a Proforte, houve uma distância enorme. Fez lembrar um artigo publicado pelo jornalista Luis Gustavo de Azevedo, o qual reproduzimos na íntegra, a seguir:
A liberdade de expressão, uma conquista da balzaquiana democracia brasileira, se tornou a trincheira de quem acredita que pode falar ou escrever o que quiser sem ter consequências. Pessoas ou grupos se utilizam do artigo 5º da Constituição como escudo para difundir fake news. O tema se fortifica ainda mais quando a propagação de informações deturpadas e a utilização de contas inautênticas chegam à cúpula do poder.
A praga da desinformação é brutal e causa prejuízos incalculáveis. Não há, porém, vacina para esse mal. A tentativa de legislar, CPIs pirotécnicas ou de simplesmente usar o sistema judiciário para conter essa disseminação são caminhos sem saída. O projeto que está em tramitação no Congresso Nacional, aprovado no Senado e em discussão na Câmara, tem pontos positivos, pois joga luz num assunto extremamente importante. Porém, a proposta se torna inócua ao tentar colocar uma manada de elefantes dentro de uma caixa de sapato. Parece que os parlamentares não debateram de fato sobre o assunto. Ou apenas usam o cenário atual para empurrar uma lei polêmica que oferece soluções até simplistas e, outras, extremamente complexas, como o “conselhão” da transparência. A possibilidade de dar errado ou tornar sem efeito é praticamente certa.
O poder da mentira
Estudos de universidades Oxford (Reino Unido) e a MIT (EUA) já comprovaram que os usuários se engajam, promovem e viralizam mais fake news do que temas reais. E o pior, boa parte das pessoas sabe que são falsas, mesmo assim, compartilham. As notícias falsificadas ou deslocadas estão cada vez mais sofisticadas, revestidas de um “rosto” amigável e bem produzidas, tendo como base conteúdos explosivos e polêmicos. Se utilizam das disputas ideológicas e as assimetrias culturais, sociais e econômicas para se propagar. A pós-verdade impera. Transformam a opinião em verdade. E se discordar, invoca-se a liberdade de expressão.
Ao analisar o impacto das fake news nas administrações públicas, como foco de estudo na resolução de problemas complexos no Master em Liderança e Gestão Pública do CLP, tive a oportunidade de desatar um pouco deste nó. Ao usar técnicas elaboradas pela Universidade de Harvard, foi possível listar causas-raízes bem incômodas e pouco discutidas.
Imprensa em crise x redes sociais em expansão
A crise da imprensa aparece como peça importante nesta engrenagem. A perda da credibilidade agrava o cenário pelo incremento do embate político e do radicalismo. O mercado da comunicação passa por adversidades econômicas, de redefinição dos negócios e o enfraquecimento da mídia tradicional. Sem investimento, o trabalho jornalístico é prejudicado. Com menos recursos humanos, a qualidade do produto desaba, tornando a função jornalística mais rasa e suscetível a erros. O trabalho jornalístico tem um custo e a maioria dos cidadãos não tem acesso às informações por não conseguir pagar. As plataformas de fact-checking, que são ótimas opções para certificar a veracidade de fatos, não conseguem competir com o fluxo exponencial das fakes news.
A expansão das redes sociais potencializou o acesso à informação, é verdade. Trata-se, no entanto, de informação não apurada, um campo campo fértil, infelizmente, à desinformação.
As megacorporações de tecnologia, donas das plataformas, estão no âmago da questão. Algoritmos viciados, sistemas de seguranças falhos, vazamento de dados de usuários, o lucro estratosférico e a falta de investimentos em conter fake news e distorções tornam a missão um trabalho de Sísifo. A falta de vontade de governos, legislações em descompasso, congressistas andando em círculos e uma justiça parcial complementam as paredes desse labirinto.
A Educação contra a fake news
Todavia, há uma porta que se abre lá no fundo, pouco falada, mas fundamental: a educação. Cidadania não é trabalhada dentro das salas de aula. A compreensão dos cidadãos de seus direitos e deveres é muito rasa. A Interpretação de texto é outra falha grave no ensino brasileiro. Os alunos saem da escola sem entender redação básica, o que facilita a difusão de notícias enganosas. Barreiras sociais e econômicas impedem a população de acessar informações, mesmo dentro das escolas. Não há incentivo à leitura. Apesar de estar inserida na Base Nacional Curricular Comum Brasileira, a educação midiática ainda é pouca adotada, mas seria o melhor caminho para deter o vírus da desinformação no seu estágio inicial.
Já existem iniciativas, mesmo que incipientes, que pretendem furar essas barreiras. Em Pelotas, num projeto experimental, busquei criar um ambiente que unisse poder público, universidade, especialistas, estudantes de jornalismo e a comunidade. A proposta era capacitar os alunos para que pudessem levar para um público, no caso um grupo de idosos de um bairro da cidade, noções básicas para identificar conteúdo falsos ou deslocados e impedir sua disseminação.
Quando ouvimos de uma senhora que agora ela não ia mais compartilhar uma postagem sem antes conferir sua veracidade, nossa missão, naquele dia, estava realizada. Vencer a onda da desinformação ainda é algo intangível, uma verdade inquietante. Mas se a gente pudesse repetir ações como as que Pelotas fez? Todos os dias, em todos os lugares, para milhares?
Luis Gustavo de Azevedo é jornalista formado pela PUC-RS e líder MLG – Master em Liderança e Gestão Pública. Atuou como diretor do núcleo digital da Prefeitura de Pelotas e foi Assessor Especial de Comunicação. Está à frente da Ascom, onde lidera as equipes de comunicação do governo.