Nem aos domingos é interrompida a marcha da insensatez conduzida por três ministros do Supremo Tribunal Federal promovidos a gerentes do Tribunal Superior Eleitoral — e dispostos a tudo para afastar Jair Bolsonaro da disputa que pretende provar que o Brasil é capaz de realizar uma eleição presidencial de matar de inveja qualquer norueguês. Com uma entrevista publicada em 13 de fevereiro na edição dominical do Globo e o discurso de despedida da presidência do TSE, no dia 17, Luís Roberto Barroso começou e encerrou a etapa desta semana como líder absoluto. Entre um palavrório e outro, manteve-se à frente do sucessor no cargo, Edson Fachin, e do agora vice-presidente Alexandre de Moraes. Os três fizeram bonito no esforço para confundir e perturbar o país. Barroso mostrou que não é fácil superar alguém que acredita na inocência de terroristas e na pureza de João de Deus. Moraes confirmou que vai longe. E Fachin deixou claro que merece o posto: ele também acha que o sistema eleitoral brasileiro, adotado por outros dois países, é o melhor do planeta.
A entrevista de Barroso foi um desfile de declarações à caça da manchete espetaculosa. “Vivemos um momento triste em que se misturam o ódio, a mentira, as teorias conspiratórias, o anticientificismo, as limitações cognitivas e a baixa civilidade”, caprichou na largada. (Sem citar o nome do seu Grande Satã particular, qualificou Bolsonaro de “burro” e “selvagem”.) Em outro trecho, jurou que há cinco meses o Brasil se livrou de um golpe de Estado. Por muito pouco, e porque o tiro disparado por nostálgicos da ditadura militar saiu pela culatra. “O Sete de Setembro foi o sepultamento do golpe”, ensinou o mestre. “Compareceram menos de dez por cento do que se esperava. Quer dizer: a extrema direita radical no Brasil é bem menor do que se alardeava. As polícias militares não aderiram, nenhum oficial da ativa relevante deu qualquer apoio àquele tipo de manifestação.” Segundo o declarante, todos os participantes da manifestação exemplarmente pacífica eram perigosos extremistas de direita. Não havia na Avenida Paulista, aos olhos do gênio da raça, um único democrata entre mais de 300 mil brasileiros de diferentes idades e classes socioeconômicas. Todos queriam ressuscitar à bala o governo militar. Isso só seria possível, nos cálculos do doutor em multidão, se os organizadores reunissem 3 milhões de radicais numa avenida onde não cabem mais de 620 mil viventes.
Moraes já inventou o flagrante perpétuo, instituiu a revogação temporária da imunidade parlamentar e ressuscitou no Brasil a figura do preso político
No dia 15, Alexandre de Moraes resolveu reduzir a distância que o separava de Barroso na busca do troféu reservado ao maior dos insensatos. Há quatro meses, o mais truculento dos ministros prendeu o líder dos caminhoneiros Marcos Antônio Pereira Gomes, o Zé Trovão, por “atos antidemocráticos”, crime que só dá na telha destelhada do Chefe da Suprema Carceragem. Há poucas semanas, ele entendeu que o preso político merecia o regime de prisão domiciliar. Nesta terça-feira, contemplou-o com a meia liberdade. Com esse invento, revogou a pena de prisão, manteve a obrigatoriedade do uso de tornozeleira e proibiu o acesso de Zé Trovão a redes sociais. Teoricamente em liberdade, a vítima do arbítrio tem permanecido em casa o tempo todo. Nem no Carnaval alguém se anima a circular pelas ruas fantasiado de preso com tornozeleira. Graças à presença do impetuoso ministro na vice-presidência do TSE, nenhum candidato estará blindado contra a criatividade alexandrina. Ele já inventou o flagrante perpétuo, instituiu a revogação temporária da imunidade parlamentar e ressuscitou no Brasil a figura do preso político. Veteranos palanqueiros que há tempos não se espantam com nada serão expostos a sustos de bom tamanho.
Moraes é o vice perfeito para o novo comandante, atesta a entrevista de Edson Fachin publicada pelo Estadão neste 16 de fevereiro. Ao anunciar com cara de paisagem, voz de comissário de bordo e dois anos de atraso que as condenações de Lula seriam anuladas porque os processos haviam tramitado na cidade errada, o carrasco da Lava Jato mostrou-se um exímio praticante da arte da dissimulação. Com uma única chicana, ele pagou com juros a dívida de gratidão com a presidente que o indicou para o STF, e demonstrou que a toga não havia melhorado a cabeça do professor de Direito que admirava Dilma Rousseff e sempre apoiou os pontapés na legalidade desferidos pelo MST. A entrevista avisa que a camuflagem se foi. A entrada em cena do Fachin de verdade completou a tropa de choque do Pretório Excelso convertido em Poder Moderador. Barroso, Moraes e Fachin não se importam com a segurança jurídica, os códigos legais e a Constituição. Sonham com a expulsão de Bolsonaro da corrida rumo ao Planalto. O que eles querem é o tumulto.
Com a mesma pose de diretor de banco aposentado exibida no dia em que guilhotinou a Lava Jato, Fachin sobrevoou a estratosfera já na terceira resposta: “A Justiça Eleitoral já pode estar sob ataque de ataque de hackers, não apenas de atividades de criminosos, mas também de países, tal como a Rússia, que não têm legislação adequada de controle”. Como assim? Os ministros não vêm recitando de meia em meia hora que o sistema eletrônico brasileiro é inviolável? Quer dizer que hackers russos conseguiram desvendar o segredo do acesso às urnas? Em que provas ou indícios Fachin se amparava para constranger o presidente brasileiro em visita oficial à Rússia? “Os dados que nós temos dizem respeito a um conjunto de informações que estão disponíveis em vários relatórios internacionais”, desconversou a sumidade em crimes cibernéticos. “Eles mostram que 58% dos ciberataques têm origem na Rússia.” O arrojo de Fachin parece ter preocupado o líder da marcha, que intensificou a velocidade no dia seguinte ao discursar em outra despedida.
De volta aos barulhos de setembro, Barroso espancou impiedosamente a verdade. As afrontas à democracia, garantiu, incluíram “o desfile de tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, com claros propósitos intimidatórios, e a ordem para que caças da Força Aérea Brasileira sobrevoassem a mesma praça, com a finalidade de quebrar as vidraças do STF, em ameaça a seus integrantes.” Se nenhuma vidraça foi sequer arranhada, se ninguém viu caças voando a poucos metros do solo, se nem mesmo o PT ousou encampar o besteirol, em que se baseava o orador para formular uma acusação de tal magnitude? Na história que lhe contara Raul Jungmann, ex-deputado federal e ex-ministro da Defesa. Jungmann tem tanto acesso a informações de tal calibre quanto o caçula dos porteiros do Palácio do Planalto. Mas os limites estabelecidos por lei são invisíveis aos olhos do trio que juntou um dissimulado, um prepotente e um ególatra.
Para o jurista Dircêo Torrecilas Ramos, os três atropelaram a Lei que trata do impeachment de ministros do Supremo. O parágrafo 3º do artigo 39 veda a integrantes do STF a prática de atividade político-partidária e exige que sejam imparciais. O parágrafo 5º os obriga a desempenhar suas funções com honra, dignidade e decoro. “As mais recentes declarações demonstram que Barroso e Fachin interferem indiretamente no processo eleitoral ao manifestar-se contra o presidente que é candidato à reeleição”, diz Torrecilas. “Barroso também se refere com palavras ofensivas ao chefe de outro Poder”. Alexandre de Moraes pode ser enquadrado no artigo 9º: “Decretar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Moraes também violou o inciso I do artigo 1º da Lei de Abuso de Autoridade, que pune “condutas praticadas pelo agente com a finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Leis não faltam. O que falta ao Senado, encarregado de julgar integrantes do STF, é altivez. Ou vergonha. Livres de vigilância, Barroso, Fachin e Moraes estarão à vontade para reinar no mundo das urnas.
Sobram semelhanças entre eles. Todos amam o som da própria voz. A cada ponto, ou a cada vírgula, têm de conter a ânsia de ovacionar o próprio falatório. Por se acharem oniscientes, onipresentes e onipotentes, veem na sua passagem pela Terra um favor que fazem ao restante dos humanos. Com a segurança de semideuses, deliberam sobre rigorosamente tudo — da demarcação de terras indígenas à metodologia de combate a pandemias, da premiação do verdadeiro vencedor do Campeonato Brasileiro de Futebol de 1987 ao destino de imóveis pertencentes à família real. Não é de espantar que a sorte das eleições seja confiada a uma trinca que chegou lá com um único voto — o do presidente da República —, enxerga no povo um bando de iletrados e nunca administrou sequer a escolha de um síndico. O tumulto tem boas chances de ser vitorioso.
Por Augusto Antunes
Fonte: Revista Oeste