Expansão chinesa na América Latina desde 2010 e fragilidade de fiscalização transfonteiriça fomentam prática
por Julia Possa
Em agosto de 2016, uma denúncia anônima levou a polícia militar até a zona rural do pequeno município de Curionópolis, no interior do Pará. No freezer de um antigo comércio local havia cabeças, peles e crânios de pelo menos 19 onças pintadas.
O padrão nos cortes dos ossos e da pele dos felinos sinalizaram que a quadrilha, presa em flagrante, era especializada em um tráfico até então desconhecido: o de ossadas de felinos selvagens – matéria-prima de artigos de luxo e produtos medicinais usados na cultura asiática, em especial na China.
A apreensão de Curionópolis chamou a atenção de biólogos e ambientalistas, que já monitoravam operações semelhantes desde o início de 2010. Até então, porém, as razões para o tráfico de partes de onça permaneciam desconhecidas.
Em junho de 2020, um artigo publicado pelo periódico Conservation Biology confirmou as principais suspeitas: apesar de escassos, registros de apreensões de órgãos de fiscalização apontaram uma relação entre a expansão do tráfico de ossadas de onças e o aumento do investimento chinês na América Latina.
O estudo revela que mais de 800 onças-pintadas, onças-pardas e jaguatiricas foram mortas para o contrabando de dentes, peles e crânios entre 2012 e 2018. Os dados, porém, englobam apenas as cargas interceptadas por órgãos de fiscalização e divulgados na imprensa.
A especificidade nos cortes confirmaram uma suspeita antiga entre os conservacionistas: as carcaças ou são enviadas aos países asiáticos ou ficam nos países latinos para atender a trabalhadores migrantes – em especial da China. Esses cidadãos estão envolvidos em megaprojetos, como estradas e barragens, que aumentaram dez vezes desde 2010.
O envio à China ficou evidente depois que o país foi o único não americano mencionado nas apreensões latinas. Além disso, um monitoramento do Center for Advanced Defense Studies apontou que partes de felinos selvagens figuraram em 31% de todas as apreensões globais de mamíferos em aeroportos em 2018. O gigante asiático foi o destino mais citado.
Ainda não se pode precisar o volume do tráfico de onças na América Latina, mas uma reportagem do jornal boliviano “El Deber”, de janeiro, apontou pelo menos três máfias internacionais responsáveis pelo controle do contrabando desses animais. Cidadãos chineses residentes na Bolívia são a maioria na composição dos grupos.
“Você precisa subornar alguém”, diz um negociante de peças de jaguaritica após ser questionado por um investigador disfarçado. “Não subornamos a alfândega, mas a polícia ou um oficial de alta patente”. O contrabandista revela que o tráfico ocorre por contêiner, e o principal país-rota é o Brasil. “Tem mais empresas comerciais lá”, justifica o homem.
Conforme a investigação, os criminosos estão concentrados nos Departamentos bolivianos de Santa Cruz e Beni – ambos na divisa com o Brasil. Apesar da falta de estradas e da consequente dependência do tráfego aéreo nessas regiões, os traficantes se articulam de forma singular.
O primeiro contato ocorre pelas redes sociais, principalmente via aplicativo WeChat – plataforma comum à população chinesa dentro e fora do país asiático. As tratativas tornaram-se mais discretas desde 2017. Até então, rádios locais transmitiam a “compra de presas de tigre”, e anúncios impressos buscavam “peças de onça”.
Ao que tudo indica, a discrição favoreceu o negócio: desde janeiro de 2019 não há novas apreensões de partes de onça na Bolívia, conforme levantamento do Mongabay Latam. O trânsito das peças não é difícil: os contrabandistas dão prioridade a aeroportos com menos segurança para levar presas na bagagem ou dentro do corpo.
Como as presas têm, no máximo, o tamanho de um telefone celular, elas cabem facilmente no bolso do traficante. “O tráfico individual é o mais utilizado”, disse Andrea Crosta, diretora executiva do ELI (Earth League International), que conduziu a investigação.
Além disso, depois que os dentes desses animais são adicionados a peças de joalheria, fica mais difícil reconhecer de que espécies foram obtidos “No final da cadeia, esses produtos podem ser facilmente lavados como um item legal”, concluiu o estudo da Conservation Biology.
Já os embarques em contêineres a países vizinhos acontecem por meio de subornos. Apesar de arriscada, a atividade é lucrativa: uma presa de onça, por exemplo, pode valer até dez vezes mais quando chega à China.
As primeiras apreensões de partes de onças ocorreram por volta de 2010 e geraram dúvida sobre a real destinação do tráfico, que antes envolvia, majoritariamente, as peles desses animais.
A fragilidade de fiscalização nas fronteiras latino-americanas – em especial de Brasil, Bolívia, Colômbia, Peru, Equador, Suriname e Guiana Francesa – fomentam esse tipo de crime, disse Carlos Durigan, co-autor do estudo publicado pela Conservation Biology e diretor da organização WCS (Wildlife Conservation Society) no Brasil.
Além do tráfico de animais, a falta de recursos para vistoriar a vastidão fronteiriça do continente faz com que regiões passem pelo domínio da mineração ilegal e contrabandos diversos. Em consequência, as apreensões não ocorrem nos ambientes de despacho, mas antes disso – como foi o caso de Curionópolis, no Pará.
“A falta de um trabalho de inteligência mais aprimorado faz com que a fiscalização não identifique os potenciais consumidores desse tráfico, o que impede um trabalho de sensibilização”, disse Durigan em entrevista a A Referência. A WCS já trabalha para melhorar a base de dados e rastreamento ao tráfico de animais.
Procurados, a alfândega do Aeroporto Internacional de Guarulhos, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Polícia Federal não responderam aos pedidos de comentário. A Polícia Rodoviária Federal não informou dados pois não inclui felinos no setor destinado aos mamíferos em geral.
A pequena população de onças latino-americanas, estimada em 173 mil indivíduos, é alvo do tráfico por conta da crença de que os ossos, presas e até genitais de grandes felinos têm atributos medicinais, supersticiosos ou afrodisíacos.
Os tigres são comercializados há séculos na Ásia – fator que fez com que esses felinos quase fossem extintos no início dos anos 2000. Os ossos são usados em pomadas, enquanto as peles servem como móveis e vestuário. Dentes e presas tornam-se joias – acessórios que sugerem riqueza e poder pela raridade.
A hipótese é de que a repressão ao tráfico de partes de tigre após 2013 elevou o preço das partes desses animais e fez com que os consumidores aceitassem outros felinos – como as onças latino-americanas. Assim, o influxo de produtos é um efeito colateral da expansão de investimentos chineses na América Latina e das altas taxas de corrupção.
A exploração empurra o maior felino das Américas para a extinção total – como já ocorreu em áreas do continente. Se há um século a onça pintada circulava em áreas desde a Argentina até o sul dos EUA, hoje sua maior população está nos biomas Pantanal e Amazônia brasileiros.
“Essa espécie, além de ser um grande predador de topo de cadeia, o que garante o controle populacional de espécies mais abundantes, tem o valor intrínseco de um ser vivo, o que está além da compreensão humana”, pontuou Durigan.
Fonte e Créditos: https://areferencia.com